As dificuldades de um regresso conturbado
Os impactos daquilo que foram meses fechados em casa fazem-se sentir no regresso à escola. “A nível de trabalho foi um horror, porque eles perderam completamente a autonomia e o ritmo de trabalho”. Quem o diz é a professora Sofia, que partilha a dificuldade sentida em retomar o ensino primário.
Pela altura do primeiro confinamento estava a lecionar a alunos do 4º ano, uma faixa-etária que varia entre os 8 e os 9 anos. Dos “mais velhinhos” já esperava uma natural falta de poder de concentração e, como consequência, a falta de consolidação das aprendizagens.
"É uma coisa engraçada, eles ficaram ainda mais bebés"
Porém, aquilo que a realmente surpreendeu a professora foi quando no ano letivo seguinte, ao receber a nova turma do 1º ano, ter verificado neles uma série de atrasos.
Em setembro, descobre que "eles nem usar uma tesoura sabiam”. “Os resquícios da covid afinal não foram só nos que estavam a aprender, também foram naqueles que ainda não tinham entrado para a escola. É uma coisa engraçada, eles ficaram ainda mais bebés. Nunca pensei que os pequeninos iam ter também esse feedback mau da covid”.
A experiência vivida pela professora Sofia em muito se assemelha àquela que nos é contada pela educadora “Lu”. Trabalha com a sala dos cinco e seis anos e lida com aqueles que são os finalistas do pré-escolar.
Na idade em que fazem a transição da creche para a escola, a educadora aponta inúmeros retrocessos nas aptidões com que estas crianças chegam a si. “Os que vinham da creche... ai meu Deus! Eu nunca tive fraldas na minha sala, vinham sem desfraldes feitos. Meninos de chupeta. A nível de linguagem nem se fala. Muitas terapias da fala ao longo destes dois anos covid.”
A máscara veio dificultar a imitação dos movimentos da boca, inibindo a aprendizagem da correta pronúncia de algumas palavras. O recurso à terapia da fala foi um dos instrumentos utilizados para colmatar esta perda.
A gestão das atividades escolares não foi tarefa fácil. O facto de não poder haver interação direta entre os miúdos obrigou as professoras a segmentar os horários de aprendizagem. A educadora recorda que “as atividades demoravam muito mais tempo”. “Enquanto que agora em dez minutos fiz a atividade, em tempo de covid uma hora não me chegava. Na mesa só podia ter dois ou três, os outros estavam sentados e demorava muito mais”. Inevitavelmente, isto significa a longo prazo um menor número de atividades realizadas, com menos proveito e, por isso, um menor estímulo das crianças.
Os horários de refeição também tiveram de ser readaptados a fim de evitar contactos entre salas. As crianças ficaram com um núcleo de contacto muito restrito e aquilo que é a interação entre elas mudou de forma drástica.
Quando questionada sobre a possibilidade de estes atrasos serem irreversíveis, a professora mostra-se confiante e diz-nos que “eles conseguem tudo”. “Eles estão numa fase que é a fase da adaptação a tudo. Agora, claro que exige muito mais”.
"Há coisas que nós dizemos online, que não dizemos presencialmente"
Vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses, Sofia Ramalho, confronta-nos com outra realidade criada pela interrupção escolar durante o período de confinamento: a quebra na relação com os pares. “É importante dizer que a questão da socialização é o aspeto mais importante da dimensão da escola e não propriamente a aprendizagem”.
No processo de aprendizagem, Sofia relembra que também decorre a socialização. O confronto de ideias, por exemplo, no contexto de sala de aula entre professor e aluno ou até mesmo, em situações mais informais, como os intervalos, são experiências em que os aspetos sociais contribuem para uma boa aprendizagem.
A inexistência deste tipo de contacto gera uma “certa inibição social”, diz-nos. O afastamento presencial deu origem a uma aproximação virtual. A interação passa a ser feita através das redes sociais e a gestão daquilo que são as emoções e situações de conflito alteram-se. “Há coisas que nós dizemos online, que não dizemos presencialmente. Este primeiro impacto de ter que estar em interação com os outros, de ter de negociar coisas, de ter de resolver pequenas desavenças, torna-se mais exigente e houve crianças que manifestaram ansiedade social”, esclarece a psicóloga.
Esta inibição social é sentida na sala de aula. Responder publicamente e presencialmente a uma questão colocada por um professor pode criar um sentimento de frustração. A ansiedade em situações de avaliação é reforçada por esta sensação de exposição à turma, depois de tanto tempo confinados nos seus próprios quartos.
O “não te esqueças de cumprimentar, dá um beijinho” foi substituído por “não te aproximes, põe a máscara”. Num contexto mais informal, estas situações vieram alterar a forma como nos relacionamos com os nossos pares e, sobretudo, nas crianças, a forma como aprendem e são educadas para se relacionarem.
“As crianças estavam nos períodos mais críticos e importantes do seu desenvolvimento, em que dão saltos de desenvolvimento significativos e foram afetadas pela pandemia. Isto alterou bastante as regras de contacto, de interação social, de interpretação do que se passa no mundo que os rodeia, de se confinar a ambientes quase que só familiares. E sim, tem um impacto muito significativo”, revela a psicóloga.
"Nós adultos ainda conseguimos relativizar, mas os miúdos, como não têm tantos anos de vida, não compreendem que isto são ciclos"
O que pode parecer apenas como um medo excessivo devido à tenra idade das crianças, verificou-se também em jovens mais velhos.
As aulas de educação física, por exigirem um maior nível de proximidade física entre alunos, foram um espaço em que esta inibição demonstrou uma maior expressão. Professor de educação física de alunos do 3º ciclo em Arcos de Valdevez, João Pereira, testemunha a resistência ao toque e à troca de equipamentos.
Fala de alunos que recusavam praticar desporto sem a máscara, que se afastavam dos outros mesmo quando a atividade era coletiva e até que se refusavam a trocar coletes entre equipas - apesar de o tempo de utilização ser mínimo. “Nós adultos ainda conseguimos relativizar, mas os miúdos, como não têm tantos anos de vida, não compreendem que isto são ciclos”, diz para justificar esta relutância.
Analisar estes episódios no seu conjunto ajuda-nos a desvendar qual a verdadeira função da escola e a refletir sobre esta.
Sociólogo da infância, Manuel Sarmento, aponta que o modo como se atua agora é crucial para reverter este danos. Salienta o papel da escola e diz-nos que a escola ensina muito mais do que aquilo que são os conteúdos programáticos. Fala-nos de um “currículo oculto”, um conjunto de competências e posturas “de relação com a linguagem, com as palavras e com os outros, que vão sendo apreendidas de forma espontânea, apesar de também ser estruturada".