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Pobreza infantil aumentou 2%. “As crianças ficaram desfalcadas”

“Durante todo o confinamento, eu tive garotos que nunca vi porque não tinham meios informáticos”, relembra com desânimo a professora Sofia. 

 

Cinco dos alunos da sua turma não tinham acesso a computadores. A dois deles, a Câmara Municipal de Moimenta da Beira conseguiu disponibilizar os equipamentos. Aos restantes, coube-lhes a realização de fichas de trabalho semanais, que eram entregues à professora através de uma cadeia de correio desenvolvida entre a escola e a Câmara. Mas esta não foi a solução ideal, apenas a possível.

 

Quando se fala em perdas na aprendizagem, não nos ficamos apenas pelo campo das desvantagens de um ensino que foi feito à distância. É importante ter consciência de que falar nisto implica pensar na falta de recursos económicos de algumas famílias, na falta de acesso a equipamentos eletrónicos e na diversidade de capital cultural e educacional dos educadores de cada uma delas.

 

Manuel Sarmento alerta-nos precisamente para o facto de “as desigualdades educacionais estarem sempre associadas às desigualdades sociais”. A escola, sendo um lugar de igualdade no acesso a oportunidades, disponibiliza um ensino comum a todas as crianças. Contudo, quando a escola fecha portas e as aprendizagens têm de ser feitas a partir de casa, o desnivelamento dos apoios fornecidos é notório. Nem todas as crianças terão pais com capacidade para participar neste ensino e de lhes facultar explicações. O que a pandemia fez foi deixar a descoberto estas desigualdades. 

 

“O facto de estarem na escola faz com que estejam um pouco mais protegidos", reforça Sofia Ramalho. A proteção que a escola oferece é sentida a vários níveis. Através do acesso a condições de alimentação e de socialização, por exemplo, ou até mesmo como veículo sinalizador e denunciador de situações de violência que as crianças possam estar a viver em casa. 

 

“Houve uma diminuição do número de casos comunicados à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), que entretanto cresceu já depois do desconfinamento”, refere Manuel Sarmento. Aponta como uma possível solução, a criação de políticas mais coordenadas, que sejam capazes de fazer este acompanhamento junto das famílias. 

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“As crianças, dos 0 aos 18 anos, continuam a ser o grupo geracional mais pobre dentro do país.”

Um dos aspetos mais preocupantes das desigualdades é que estas se repercutem de geração em geração. Numa sucessão em cadeia, os impactos tornam-se uma bola de neve, conta-nos a vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses. “As crianças com mais vulnerabilidade ficam com menos acesso em termos de probabilidade e oportunidades de serem bem sucedidas na escola, e se não forem bem sucedidas na escola isto vai afetar-lhes as questões da empregabilidade e a questão económica das futuras famílias.”

 

O empobrecimento do país foi geral nesta fase, contudo o seu eco foi maior nas famílias mais vulneráveis, que ficaram ainda mais à margem. “Os dados que temos disponíveis no INE, relativamente ao ano de 2020, dizem-nos que houve um aumento de 2% na pobreza infantil”, diz-nos o sociólogo. Aquilo que as estatísticas nos dizem acerca do elevador social é que este desceu cerca de dois andares para as crianças portuguesas. “As crianças, dos 0 aos 18 anos, continuam a ser o grupo geracional mais pobre dentro do país.”

 

As dificuldades económicas foram particularmente sentidas no acesso a cuidados psicológicos. Sofia Ramalho fala num aumento significativo das listas de espera de consultas para crianças. As respostas do SNS tornaram-se insuficientes para fazer face ao número de pais que procuravam ajuda para os seus filhos nesta fase. 

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Aguardam muito tempo pela primeira consulta e quando a conseguem,  deparam-se com um espaço de seis meses até conseguirem a próxima. A psicóloga afirma que isto “não permite uma intervenção psicológica de qualidade para recuperar as pessoas no momento em que elas mais estão a precisar”. 

"A nível psicológico, foi um bocado mais complicado de lidar"

Sem respostas do SNS, os portugueses viram-se obrigados a recorrer a clínicas privadas para conseguirem uma assistência contínua. Mas esta só foi uma realidade acessível àqueles que disponham de meios económicos para o fazer. O que não correspondia à possibilidade da maioria. E quando o acesso a cuidados básicos de saúde está apenas ao alcance de quem os consegue pagar, as desigualdades sociais acentuam-se ainda mais.

 

A professora Sofia conta que teve o dissabor de ter alunos que perderam familiares por causa da covid e afirma que isso “a nível psicológico, foi um bocado mais complicado de lidar”. Relata episódios de choro das crianças quando se abordava o tema e sublinha que os professores não têm competências de psicologia para lhes prestar auxílio. “Temos apenas as competências que vamos aprendendo com a vida.”

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Perante o cenário desanimador, Manuel Sarmento avisa que este poderia ser pior. “Durante a pandemia assistiu-se a um fenómeno que foi muito relevante em Portugal, que foi a mobilização global da sociedade civil, numa atitude solidária perante as consequências mais graves da pandemia, quer junto das crianças, quer junto das pessoas idosas”, atenta.

 

Destaca especialmente o papel das organizações da sociedade civil no combate à fome. A distribuição alimentar pelas famílias mais carenciadas foi assegurada por estas instituições, que faziam o levantamento das necessidades junto das comunidades locais.

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No que diz respeito à guerra o sociólogo não tem dúvidas: "Há muitas crianças que vão passar fome". Menciona uma crise alimentar global que se começa a fazer sentir, mas à qual as crianças portuguesas poderão conseguir escapar. "No caso português, nós somos provavelmente um dos países da Europa que é menos afetado pelas consequências da guerra e ainda estamos para saber como é que essas consequências nos vão atingir".

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​Não deixa, no entanto, de frisar que esta é uma preocupação sobre a qual nos devemos debruçar, fazendo uso de uma perspetiva global. "Devemos perceber não apenas o que se passa com as nossas crianças, mas também o que se passa com as outras crianças do mundo inteiro. Falar de uma crise alimentar global é extremamente preocupante".

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